segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Enterramentos na Capela de Nossa Senhora da Graça



Nem sempre os cristãos foram enterrados dentro das igrejas. Essa prática começou a divulgar-se no Séc. XII e foi ganhando importância de tal modo que, no início do Séc. XVIII, era única forma de enterramento aceitável.
Foi quando, um pouco por toda a Europa, começaram a ganhar força as vozes que, invocando razões sanitárias, propunham ou exigiam o fim dos enterramentos no interior das igrejas.
Entre estas vozes encontravam-se membros relevantes da Igreja, como é o caso do Bispo D. Manuel de Aguiar que governou a Diocese de Leiria entre 1790 e 1815, o qual teve a iniciativa de criar, em 1798, um cemitério nas traseiras da Sé, proibindo os enterramentos dentro dela.

No entanto, apenas em 21 de Setembro de 1835, foi publicado o decreto, assinado por Rodrigo da Fonseca, que determinava a criação de cemitérios públicos em todas as povoações
E, em 28 de Setembro de 1844 foi publicado o decreto que proibia os enterramentos no interior das igrejas.
A guerra civil tinha acabado há apenas dez anos, nem todas as feridas estavam saradas e outras novas tinham sido abertas pelas políticas cabralistas.
Foi assim que, a forte oposição popular à proibição dos enterramentos nas igrejas foi a causa imediata da Revolta da Maria da Fonte que, por sua vez, está na origem directa de mais uma guerra civil, A Patuleia, que assolou Portugal entre 1846 e 1847 e só terminou após intervenção militar estrangeira (inglesa e espanhola).

Havia de levar ainda tempo até à cessação definitiva dos enterramentos nas igrejas, como se vê de uma curiosa observação na Relação do Cemitérios Parochiais e Manicipaes do Concelho da Póvoa do Varzim, de 1 de Fevereiro de 1858:
“Em todas as freguesias rurais os adros servem de cemitérios, sendo porém preferidas as Igrejas pela repugnância que os povos têm em fazer os enterramentos fora d’ellas, o que também se verifica clandestinamente na Cabeça do Concelho pela mesma repugnância e pela pequenez do actual cemitério parochial.”
Era a subsistência da velha idéia de que “receber sepultura sagrada significa para os católicos uma via para diminuir as penas que deverão cumprir; uma oportunidade de obter a salvação ou de garanti-la. Receber enterramento nas igrejas torna-se o caminho para a eternidade no paraíso celeste.”([i])

Dentro da igreja, a localização das campas correspondia a uma hierarquia (reflexo do lugar terreno do inumado), diminuindo de importância desde a capela-mor até à entrada do templo.
Os enterramentos no adro eram para escravos, gente muito pobre ou pessoas que, pelas circunstâncias da morte (ou da vida), não deveriam repousar no interior da igreja.

Ora, na freguesia de São Vicente de Aljubarrota, como nas demais, no início do 2º quarto do Séc. XIX, os enterramentos faziam-se, na sua esmagadora maioria dentro da Igreja paroquial.
As excepções são raras, entre elas:
- O Pe Manoel de Souza, ou Manoel de Souza Coelho, dos Casais de Santa Tereza, faleceu em 27-11-1825 e foi enterrado na Capela da Santa Tereza, dos ditos Casais.
- O Pe Joaquim de Souza, da Ataíja de Cima, faleceu em 4-2-1827 e foi sepultado dentro da Capela de Nossa Senhora da Graça, da mesma Ataíja.
- Em 22-11-1827, faleceu, Francisca Coelha que foi sepultada dentro da Capela de Nossa Senhora da Graça, da Ataíja de Cima.
- Em 21-10-1830, faleceu Perpétua Heitor, viúva que foi sepultada dentro da Capela de Nossa Senhora da Graça.

Obedeceria, também, o enterramento nas capelas das aldeias, a considerações de ordem hierárquica? Ou seja, uma vez que, tal como se diz no relatório (de 1758) do cura de São Vicente de Aljubarrota, inserto nas Memórias Paroquiais: “a capella de Nossa Senhora da Graça … é do povo daquele lugar que se chama Ataija de Sima”, isso significará que só os ataijenses podem ser nela enterrados e, quando vemos que aí é enterrado o Padre natural da terra, como na capela dos Casais é enterrado o Padre daí, enquanto a generalidade das pessoas de ambos os lugares é enterrada na Igreja Paroquial, sabida a importância social dos Padres, então, somos tentados a pensar que apenas as pessoas importantes do lugar eram enterradas na capela.

As duas mulheres enterradas em Nossa Senhora da Graça eram, uma,
- “Francisca Coelha mulher que era de Joaquim Heitor… (que) não recebeo sacramento algum por se achar afogada em huma A Lagoa do dito Lugar procedido de hum delírio … (no entanto tinha) vivido como boa cristam e temente a Deos de que foram Testemunhas o Tenente Raimundo Joze de Souza Juiz ordinário e Joze gomez Coelho Tabelião das Notas (ambos, de Aljubarrota) e, a outra,
- “Perpetua Heitor viúva que era de João Tavares moradores que erão na ditta A Taija”. Esta, “fez testamento no Livro das Notas desta Villa Testamenteiro Joaquim Heitor da A Taija de Sima”. Ou seja, o testamenteiro da Perpétua é o marido da Francisca Coelha e tem o mesmo apelido da testadora. São pois, quase de certeza, parentes.
As testemunhas (o Juiz e o Tabelião) indiciam o estatuto da falecida Francisca e de seu marido.

Vamos ver o que, sobre a importância desta família, nos dirá o testamento da Perpétua.




[i] PRÁTICAS TRADICIONAIS DE SEPULTAMENTO NA CIDADE DE DIAMANTINA , por Silveira, Felipe Augusto de Bernardi, Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano III, n. 7, Mai. 2010, consultado online in http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pdf6/5Felipe.pdf, em 27 de Outubro de 2013.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

O testamento do Padre Manoel de Souza



A indicação, à margem do assento de óbito do padre Manuel de Sousa, (VER AQUI) de que este tinha feito testamento no livro de Notas do Tabelião de Porto de Mós, despertou, obviamente, a curiosidade de saber que tipo de bens acumulava um padre da nossa região, no 1º quartel do Séc. XIX.
Houve, pois, que indagar junto do Arquivo Distrital de Leiria sobre o dito testamento que foi encontrado e abaixo transcrevemos.
Como era próprio da época, o dito padre aparece, nuns lados, identificado como Padre Manoel de Sousa, ou Manoel de Sousa Coelho e, noutros lados, como Manoel Coelho.
Quanto ao testamento, o melhor é lê-lo (quem não está habituado a documentos mais antigos terá, de início, algumas dificuldades, mas, à segunda leitura, essas dificuldades já desapareceram) e, sobre ele, apenas diremos que não é claro quantos irmãos (aliás, talvez, todas irmãs) tinha o Padre mas, se atendermos às separações que faz dos (treze, contei eu) sobrinhos, parecem, essas irmãs, terem sido quatro.
Os documentos que conhecemos (o assento de óbito e o testamento) não nos elucidam sobre a idade, nem sobre os progenitores do padre e, nem sabemos que cargos terá desempenhado, que paróquias terá pastoreado mas, uma vez que uma sua sobrinha casou com o capitão José Luís de Sousa, das Pedreiras, vemos aqui um vislumbre das relações do padre com as famílias importantes da região.
Interessante, para nós, é o facto do padre ter designado como seu testamenteiro e herdeiro universal a seu sobrinho Manoel Machado, da Ataíja de Cima.



Testamento que faz aberto nas Nottas o Rdº. Pe. Manoel Coelho dos casais de Stª. Theresa trº. daV.ª  dePorto deMós

Feito em 22 de 9bro. de 1825 e Dado a D. em o mmo diaa fls 134Vº

Saibão quantos este instrumento de Testamento de ultima e derradeira vontade ou como em Direito milhor lugar haja e mais valor possa ter em que sendo no anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil outto centos vinte sinco anos aos vinte e dois dias domes de Novembro do ditto anno neste lugar dos casais de Santa Theresa termo da Villa de Porto deMos casas de morada do Padre Manoel Bento digo Manoel Coelho onde eu Tabelliaõ aodiante nomeado e assignado vim e sendo ahi presente o ditto Padre Manoel Coelho pessoa conhecida de mim Tabelliaõ e das testemunhas aodiante declaradas e assignadas que dou fe ser o próprio edas mesmas testemunhas; por elle dito Padre Manoel Coelho que estava doente decama mas em seu prefeito juízo eentendimento segundo o parecer de mim Tabeliaõ edas mesmas testemunhas pellas acertadas respostas que deu as perguntas que lhe fizeraõ, me foi ditto na presença das mesmas testemunhas que queria que eu Tabeliaõ lhe tomasse e escrevesse nas minhas nottas o seu Testamento de ultima e derradeira vontadeque estava determinado a fazer de sua livre e expontanea vontadepella maneira e forma seguinte: Determinou que se lhe fizesse o seu funeral conforme ouso e custume destes sítios segundo o Estado Eclesiastico = que selle mandassem dizer pella Sua Alma duzentas missas de esmola de cento evinte reis cada huma, conforme a sua tenção e ditas de huma só vez; e pelas Almas de seus Pays cem missas da mesma esmola epor huma só vez = que deixava a sua creada Clemensia pelas soldadas que lhe deve aterra da Eira neste lugar com as arvores e suas pertenças, que parte do norte com caminho edosul com Francisco André = que pelos bons serviços que a mesma Sua Criada Clemensia lhe tem feito e espera lhe continue atté a sua morte lhe deixa em sua vida huma terra e vinha no sitio da  lameira (?) em a qual  terra e vinha ella ditta criada terá somente o uso efrutto, e por sua morte passara para Maria filha do Cappitaõ Jose Luis de Souza das pedreiras afilhada delle testador ou aos herdeiros della, sendo a esse tempo falecida, e que neste legado se inclue com o mesmo uso efruto as basilhas de levar vinho que elle testador possuir a sua morte; onorada esta propriedade legada á divida de quarenta mil reis que elle testador deve a sua irmã Luisa Coelha do Pé da Serra Avó da ditta sua afilhada Maria = Dice que deixava á ditta Sua Criada Clemensia para ella dispor a seu arbítrio metade detodos os bens moveis que houver asua morte, ehuma maraã, entendendo-se nos moveis taõ bem os frutos que entaõ ouver = Dice deixava a sua sobrinha Francisca dois mil equatro centos reis; a sua sobrinha Joaquina mil eduzentos rei s=;  a sua sobrinha Maria mil eduzentos reis;  a sua sobrinha Rosa mil eduzentos reis; e a seu sobrinho Joaõ mil eduzentos reis; e a seu sobrinho Luis o Rellogio eaEspingarda; e a João, Maria, Bernardo, Joaquim, eSebastiana, filhos de Sua Irmã Maria mil eduzentos reis a cada hum, tudo em dinheiro e por huma só vez: E no Remanescente detodos os mais Seus bens moveis Sobmoventes ede Rais, direitos, eacçoens Institue por Seu Universal herdeiro etestamenteiro a Seu sobrinho Manoel Machado da Ataija de Sima com a obrigação de pagar Suas dividas, funeral, Legados pios e profanos dentro dedois anos; menos o que fica Legado a Sua Criada Clemensia porque esta entrará na posse dos Legados que lhe ficão declarados Logo que aconteça a morte de elle testador; e que o ditto Seu herdeiro pagará o juro de setenta mil reis que elle testador deve emais algumas dividas que se legalizarem, everdadeiras forem: epor esta maneira dice elle testador havia feito Seu testamento de ultima e derradeira vontade, e que queria que Se cumprisse como nelle Se conttem edeclara; assim o outhorgou por bem Escripto emverdade que aceitou eeu Tabeliaõ aceito tanto quanto por direito me he permetido sendo atudo por testemunhas presentes que como atestador assignaram depois desta nota por mim Tabelliaõ ser lida edeclarada oCapitaõ Joaõ da Silva Fialho deAljubarrotta; Agostinho Pinto deste Lugar, Francisco Lourenço deste Lugar, António Dorta deste Lugar, José da Silva da Boieira, José da Silva dos casais deste Lugar e dou fe e dou fe pa por ser verdade todo oreferido eeu Alexandre Duarte Tabelliaõ das Nottas que o escrevi e assigno e declaro que com o testador e a rogo deste, por não poder bem escrever assignou a ditta testemunha oCapitaõ Joaõ da Silva Fialho efis esta declaração o Sobreditto Tabeliaõ declarei e assignei
Como testemunhaeaRogodo Testador por mo pedir e rogar João daSilva Fialho
Manel Coelho (O testador assinou, em letra muito trémula)
Agostinho P.to
(seguem-se assinaturas de cruz das testemunhas Francisco Lourenço, António Dorta, José da Silva da Boieira e José da Silva dos Casais)
Alexandre Duarte



(Com os nossos agradecimentos ao Arquivo Distrital de Leiria e à sua Directora, Dra. Paula Alexandre Cândido)

terça-feira, 1 de outubro de 2013

O Almirante Cardoso



A primeira vez que encontrei o Almirante Francisco António Gonsalves Cardoso, foi no assento de casamento de sua filha Adelina Augusta de Freitas Cardoso que, com a idade de 28 anos, em 15 de Dezembro de 1884, se consorciou com o dourador Joaquim da Fonseca Brilhante e Brito, em São Vicente de Aljubarrota, vila de onde todos eram naturais.
E, foi já depois de ter vasculhado a internet à procura de mais informações sobre este, para mim, desconhecido marinheiro que reparei na pequena placa, numa esquina à Rua Direita, que dá nome à “Rua Almirante Cardoso”, com que Aljubarrota o homenageia.

Apesar dessa placa, julgo que a maioria dos seus conterrâneos, tal como eu, não saberá quem foi o Almirante Cardoso. Havia, pois, que investigar e, consultada a documentação que, sobre ele, existe no Arquivo Histórico da Marinha, ficamos a saber que:

Francisco António Gonsalves Cardoso, natural de Aljubarrota, filho do Capitão Francisco António Gonsalves Cardoso, foi baptizado em São Vicente de Aljubarrota em 9 de Fevereiro de 1800.
Alistado na Academia de Marinha, completou o respectivo curso em 1821, iniciando uma longa e brilhante carreira de 50 anos que o levou até Contra-Almirante.

Pelo meio, navegou por todos os mares e batalhou em Portugal, Brasil e Angola.

Dos combates travados em Angola, dá conta a inscrição em pedra sobre o portão do Forte da Catumbela:
“Foi feito á custa dos habitantes de Bengella, honra á digna Camara Municipal, os contínuos insultos feitos aos brancos pelos indígenas deste districto, originarão a construção deste reducto. As guarnições dos brigues Mondego, Tamega e corveta Relampago, comandados pelo chefe F. A. Glz. Cardozo, os submeterão por ordem do Governador Geral o Exmo. Snr. Pedro Alexandrino da Cunha. F.X. Lopes Major do Extº. traçou e construio 1ª pedra 5 Outubro 1846”
(este forte da Catumbela encontra-se, actualmente, em mau estado de conservação mas o Governo angolano já manifestou a vontade de o reconstruir e preservar).

Os combates que travou em Portugal em 1832 e 1833 quando integrava as tropas liberais de D. Pedro IV com quem tinha vindo do Brasil, levaram-no a ser ferido por duas vezes e, uma delas, muito gravemente.
Antes, aos 23 anos, tinha participado, comandando uma canhoneira, no Bloqueio do Recôncavo, (Baía, Brasil), no âmbito das acções militares de iniciativa portuguesa contra os independentistas brasileiros.

Entre Setembro de 1827 e Julho de 1832, esteve ao serviço da marinha brasileira, o que denuncia a sua filiação liberal.

Como administrador colonial, foi Governador-Geral da Província de Angola e Governador da Província de Macau, Timor e Solor e Deputado por Angola.

Recebeu numerosas condecorações, designadamente as de Cavaleiro da Ordem da Torre e Espada, Cavaleiro de Nossa Senhora da Conceição “pelos distintos serviços praticados na estação naval, d’Angola durante um longo e penoso cruzeiro contra o tráfico da escravatura”, Cavaleiro e Comendador da Ordem de São Bento de Aviz, Oficial da Legião de Honra (França), Oficial da Ordem da Roza (Brasil), Comendador da Ordem do Leão Neerdelandêz (Holanda), Grã-Cruz da Ordem de Isabel a Católica (Espanha).

Foi agraciado com o título do Conselho de Sua Magestade (podendo usar, e usou, o título de Conselheiro).

Em 1849 foi-lhe diagnosticada uma hepatite crónica e, nesse ano, esteve em Aljubarrota, doente, conforme se vê de um atestado médico que lhe foi passado pelo Dr. João Pereira Crespo, “Bacharel formado em Medicina pela Universidade de Coimbra, Médico do Partido Municipal d’Alcobaça e Deputado às Cortes”.
Em finais de 1851, autorizado a residir em Aljubarrota “devendo apresentar-se logo que seja nomeado para algum serviço”.
E havia de ser, ainda, nomeado para muitos serviços dos quais os últimos foram o de Comandante do Corpo de Marinheiros, aos 70 anos de idade e, no ano seguinte, o mesmo em que chegou a contra-almirante do quadro, o de “Ajudante de Campo de Sua Majestade El-Rei o Senhor D. Luiz 1º”.

Faleceu em 24 de Fevereiro de 1875

Foto do Almirante Cardoso, cedida pela Biblioteca Central da Marinha – Arquivo Histórico
(reprodução proibida sem autorização expressa da Biblioteca Central da Marinha – Arquivo Histórico)


13 anos depois do falecimento do Almirante, em 1888, o deputado por Alcobaça, Dr. António Lúcio Tavares Crespo, fez um requerimento inquirindo pela pensão à viúva, pensão essa que o parlamento tinha aprovado mas o Ministério da Marinha não pagava.



  
(Com os nossos agradecimentos ao Arquivo Histórico da Marinha e à sua chefe Dra. Isabel Beato)