Os recenseamentos populacionais são quase tão antigos
como os mais antigos impérios e, à semelhança do que se passa nos estados
modernos, tinham por objectivo fornecer indicações úteis aos governos desses
impérios, designadamente no que respeita à recolha de impostos, realização de
obras públicas e organização de exércitos.
É assim que há notícias de recenseamentos desde há
4900 anos e, até ao nascimento de Cristo, houve recenseamentos em, pelo menos,
o Egipto, a China, o Japão e no Império Romano.[i]
É, aliás, comummente conhecido o facto bíblico de que Jesus terá nascido em
Belém acidentalmente, apenas porque a família foi obrigada a deslocar-se de
Nazaré, onde residia, até Belém (local de origem da família) para responder no
recenseamento ordenado por César Augusto.
Porque o recenseamento de César Augusto decorreu em
todos os territórios do Império, incluindo a província da Lusitânia esse é,
também, o primeiro recenseamento conhecido que terá ocorrido no território
actualmente ocupado por Portugal e, depois disso, também os Árabes, durante a
sua permanência na Península Ibérica, aqui promoveram diversos recenseamentos.
Após a independência de Portugal, os recenseamentos, então
chamados contos, têm objectivos estritamente militares e só no Séc. XVI,
reinava D. João III, surge o chamado Numeramento de 1527-1532, o qual tem a
ambição de ser um recenseamento geral da população.
Seria, no entanto, necessário esperar até 1864 para a
realização do primeiro Recenseamento Geral da População[ii]
elaborado segundo bases científicas que, aliás, tinham sido fixadas apenas 11
anos antes, no Congresso Internacional de Estatística de Bruxelas, de 1853.[iii]
O Numeramento de D. João III, sendo o primeiro
recenseamento populacional realizado em Portugal é, apesar das suas
deficiências, um importante acervo de informação, precioso para o conhecimento
da realidade da população portuguesa na época em que foi realizado.
No que diz respeito à área geográfica agora ocupada
pelos municípios de Alcobaça e Nazaré, José Eduardo Lopes no excelente texto “O
“Numeramento” de 1527 – 1532”[iv],
transcreveu a parte relevante do Numeramento e deu preciosas informações sobre
o modo como foi elaborado.
Como assinalado no texto referido, o “Numeramento” foi
transcrito em português moderno e publicado por Anselmo Braamcamp Freire no
Archivo Histórico Portuguêz, tendo a parte relativa à Estremadura sido incluída
no Vol. VI, n.º7, Julho de 1908, sob o título “Povoação da Estremadura no XVI.
seculo.”[v]
O levantamento dos dados para o Numeramento foi feito
por Comarcas e, felizmente para nós, “Jorge Fernandes, a quem coube efectuar o
levantamento na Província da Estremadura, é o escrivão que forneceu mais dados
sobre as modalidades práticas do seu desempenho,”[vi]
donde, o Numeramento apresenta, quanto à Estremadura[vii],
dados muito coerentes e fiáveis apesar do que, diversas lacunas ou imprecisões,
reais ou aparentes, não deixam de nos provocar interrogações.
Uma dessas interrogações, digo eu, diz respeito às
viúvas.
Como se vê no quadro anexo, o número de viúvas por
vila tem uma enorme e aparentemente injustificada variação, face ao total de
fogos contados e que vai desde os 29,5% em Paredes, a 25% em Turquel, 21% em
Évora, (onde, aliás, o rigor da informação chega ao pormenor de distinguir as
viúvas que existem no corpo da vila e no termo[viii]),
19,2% na Cela, 11,6% nas Caldas e 3,7% em Alvorninha. Enquanto que nos demais concelhos
não é indicada a existência de quaisquer viúvas.
Tal omissão só pode dever-se a lapso, ou na recolha de
elementos in loco ou na sua transcrição. É que, por um lado não é compreensível
a inexistência de viúvas em todas essas vilas e termos nem, por outro lado,
essa é uma omissão menor. O mesmo se diga dos clérigos e outros privilegiados,
cuja existência apenas é assinalada na Pederneira, Porto de Mós, Caldas,
Batalha e Leiria.
Vila
|
No corpo da vila
|
No seu termo
|
Total
|
Dos quais viúvas
|
Dos quais clérigos e outros privilegiados
|
Porto de Mós (1)
|
140
|
372
|
512
|
22
|
|
Alpedriz (2)
|
16
|
30
|
46
|
||
Cós
|
38
|
29
|
67
|
||
Aljubarrota
|
163
|
45
|
208
|
||
Pederneira
|
176
|
21
|
197
|
7
|
|
São Martinho
|
4
|
9
|
13
|
||
Alfeizerão
|
60
|
23
|
83
|
||
Maiorga
|
87
|
13
|
100
|
||
Alcobaça
|
127
|
159
|
286
|
||
Paredes
|
27
|
0
|
27
|
8
|
|
Évora
|
146
|
29
|
175
|
32
|
|
Turquel
|
36
|
21
|
57
|
9
|
|
Stª Catarina
|
31
|
69
|
100
|
||
Cela
|
104
|
8
|
112
|
20
|
|
Alvorninha
|
14
|
94
|
108
|
4
|
|
Salir do Mato
|
5
|
11
|
16
|
||
Salir do Porto (3)
|
15
|
1
|
16
|
||
Caldas (4)
|
70
|
16
|
86
|
10
|
6
|
Óbidos
|
160
|
916
|
1076
|
||
Batalha
|
77
|
68
|
145
|
8
|
|
Leiria
|
584
|
1.476
|
2060
|
95
|
(1)
A Vila de Porto
de Mós era do Duque de Bragança.
(2)
A Vila de
Alpedriz era do Mestrado de Santiago.
(3)
As Vilas de Salir
do Porto, das Caldas e de Óbidos, eram da Rainha.
(4)
Da vila das
Caldas, diz-se na epígrafe ser “Da Rainha Nossa Senhora” e, no texto, “que he
delRei Nosso Senhor”. De facto, a vila das Caldas estava inserta no termo de
Óbidos que desde D. Afonso III pertencia às rainhas e pertenceu a D. Leonor,
aliás a fundadora da vila das Caldas, até ao seu falecimento em 1525. Em 1527, vacante
de rainha, o senhorio estava na esfera do Rei.
Os números do quadro acima referem-se a vizinhos. Sabendo-se
que “vizinho” significa o mesmo que morador, ou fogo ou seja, família que
habita numa casa e que, em média grosseira, podemos admitir como muito provável
a existência de quatro pessoas por família ou casa então teríamos, na soma das
vilas correspondentes aos actuais municípios de Alcobaça e Nazaré, um total de
cerca de 6000 habitantes.
A norte pontificava Leiria, cabeça de um concelho
enorme que ia desde Carnide e Ranha, hoje no município de Pombal, por Espite,
agora no concelho de Ourém até ao Alqueidão da Serra e à Calvaria, hoje de
Porto de Mós e incluía todo o concelho da Marinha Grande que, então, não
existia.
Leiria era um concelho encabeçado pela maior cidade
que havia (e há) entre Coimbra e Lisboa, com uma população de 2.300 ou 2.500
pessoas, mais de um quarto do total dos habitantes do concelho que se distribuíam
por mais de 150 quintas, casais e aldeias, das quais menos de uma dezena tinha
mais de 20 vizinhos.
A maior dessas aldeias era o Reguengo (do Fetal), com
64 vizinhos.
Mais próximo de nós, as Brancas eram também uma grande
povoação (melhor, duas povoações[ix],
com 34+18 vizinhos), enquanto a Calvaria se ficava pelos 5 vizinhos.
Já no concelho de Porto de Mós, uma outra Calvaria[x]
tinha 6 vizinhos, o Juncal 16 e o Pé da Serra e Cumeira (sic.)[xi]
somavam 22.
O concelho da
Batalha, cuja criação tinha tido lugar no ano de 1500,- apenas 27 anos antes, - para dar enquadramento
administrativo aos privilegiados “por bem de seus ofiçios do mosteiro da
Batalha e obras dele”, estava encravado no de Leiria e reduzia-se a “meia
légua” em redor da vila.
Do concelho de Aljubarrota, diz Jorge Fernandes que:
It. A vila dAljubarrota, que he do mosteiro dAlcobaça,
tem 163 vizinhos no corpo da vila.
E tẽ de termo as aldeas seguintes: - It. Aldea dos
Chãos e Cumeira tẽ 15 vizinhos. – Aldea da Tayja de Cima, 10. – Aldea do
Carvalhal, 13. – Aldea da Chaqeda, 7.
Esta vila dAljubarrota tem de termo pera parte de
Porto de Mos hῦ quarto de mea legoa.
Parte cõ Coz e Porto de Mos e Maiorga e Alcobaça.
Soma ao todo
208 vizinhos.
Diz Jorge Fernandes que Aljubarrota parte (faz
fronteira) com Porto de Mós, Maiorga e Alcobaça. Ora, o caso é que fazia,
também, fronteira com Évora como se vê, aliás, na descrição que o mesmo faz
desta vila: “(A vila d’Evora d’Alcobaça)
Parte cõ turuqel e cõ Alcobaça e cõ Aljubarrota.”
Também, quando lemos pela primeira vez esta descrição
da vila de Aljubarrota logo uma dúvida nos assaltou: Se o autor se refere a uma
Ataíja de Cima, onde está a Ataíja de Baixo? Pois, o caso é que não está e,
devia haver uma Ataíja de Baixo pois, de contrário bastaria nominar a aldeia de
Ataíja como, aliás, se fez em todos os documentos anteriores de que tenho
conhecimento. Mas, não é só a questão de haver uma ou duas ataíjas é, também, a
pertença ao mosteiro de Alcobaça. É que, ainda 59 anos antes, como se vê, por
exemplo, de um documento de que já falamos nestes blog (http://ataijadecima.blogspot.pt/2010/05/afonso-vicente-e-margarida-vasques-dois.html) a Ataíja se designava, simplesmente, por Ataíja e
pertencia ao termo de Porto de Mós.
De Turquel para leste, Jorge Fernandes apenas refere a
existência da aldeia dos Candeeiros e casais isolados e, na descrição de Évora,
não refere nenhuma aldeia situada a nascente da vila:
It. A vila dEvora dAlcobaça tem 146 vizinhos no corpo da vila, dos
quaes sam 31 viuvas. Tem o termo seginte: – It. Aldea dos
Cadavaes tem 8 vizinhos e mais huma viuva. – Aldea do Arrieiro, 16. – Aldea dos
Marroos, 6. – Casal do Beqoro, 2. Esta vila tem de termo
pera a parte de Turuqel hum quarto de mea legoa, e outro tamto pera a parte
dAljubarrota e outro tanto pera Alcobaça. Parte cõ Turuqel e
cõ Alcobaça e cõ Aljubarrota. – Jorge Fernandez o escrevy.
Soma ao todo, 175 vizinhos.
Isto dá-nos a informação, relativamente segura, de que,
naquele tempo, era muito escassa a povoação na borda da serra, onde apenas se
notavam, com alguma dimensão, as aldeias da Ataíja de Cima e a dos Candeeiros. No
entanto, esta situação começaria a mudar logo em 1532 quando, por carta
assinada pelo Cardeal Infante D. Afonso, (que então tinha 23 anos e já era
abade comendatário do Mosteiro de Alcobaça desde a idade de dez anos)[xii],
foi criada a freguesia da Benedita e, ainda no Séc. XVI, vão ser construídas capelas em muitas aldeias da região, definindo-se por essa época um esquema de
povoamento que, sem grandes alterações, se mantém até aos nossos dias, embora com significativas alterações na importância relativa de cada povoação.
Se atentarmos que naquele tempo a população de Portugal oscilaria entre 1,5 e 2 milhões de pessoas e que, na actualidade, esse número é de 10,5 milhões, das quais habitam no concelho de Alcobaça cerca de 57.000 pessoas e no da Nazaré pouco mais de 15.000 então, podemos verificar que, enquanto a população de Portugal cresceu, nestes quase 500 anos, entre 525% e 700%, na região que, grosso modo, corresponde ao domínio de Cister, esse crescimento foi de cerca de 1200%.
Se, cerca de 1530, Portugal tinha uma densidade populacional entre os 16,3 e os 21 habitantes por km2 e, na região a que nos referimos esse valor era de, talvez, uns 12 habitantes por Km2, quase quinhentos anos depois a situação inverteu-se: Agora (2011), Portugal tem em média 115,3 habitantes por km2, enquanto na Nazaré são 183,9 e em Alcobaça 138,9 (média dos dois concelhos: 146,5 hab/km2)
Ou seja, de região escassamente habitada cerca de 1530, os “Coutos de Alcobaça” passaram, na actualidade, a exibir uma densidade populacional que ultrapassa, largamente, a média nacional.
Pormenor do mapa de Portugal de Álvaro Seco, de 1560
(apenas 30 anos após o "numeramento") mostrando a nossa região
[i] O mais
antigo recenseamento de pessoas de que há notícia terá ocorrido no Egipto no
ano de 2900 A.C. Sobre este facto e muitos outros da história da Estatística,
veja: http://www.alea.pt/html/nomesedatas/swf/factos.asp?art=1
(consultado online em 24-2-2016)
[ii] O
último recenseamento em Portugal realizou-se em 2011 e foi, talvez, o último
realizado por inquérito às famílias, já que a generalidade da informação
poderá, de futuro, ser recolhida em bases de dados oficiais.
[iii] Uma
lista dos recenseamentos realizados em Portugal até ao Séc. XIX pode ser vista
em: https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=censos_historia_portugal
(consultado online em 24-2-2016)
[iv]
Publicado em 5-2-2016 no blog “Alfeizerão” (http://alfeizerense.blogspot.pt/2016/02/o-numeramento-de-1527-1532.html?view=flipcard,
consultado online em 24-2-2016)
[v] Todas as
transcrições que fizermos respeitarão a ortografia usada por Amselmo Braamcamp
Freire.
[vi] Daveau,
Suzanne, “A Descrição Territorial no Numeramento de 1527 – 32”, consultado em
linha em 25-2-2016, in file:///C:/Users/fnac/Documents/Dialnet-ADescricaoTerritorialNoNumeramentoDe152732-2654430%20(3).pdf
[vii]
Naquele tempo, a Comarca da Estremadura ocupava o território que, grosso modo,
corresponde na actualidade aos Distritos de Lisboa, Santarém, Leiria, Coimbra e
Aveiro.
[viii] “A vila dEvora
dAlcobaça tem 146 vizinhos no corpo da vila, dos quaes sam 31 viuvas. Tem
o termo seginte: – It. Aldea dos Cadavaes tem 8 vizinhos e mais huma viúva”
[ix] Aldea
de Cima dos Brâcos e Aldea de Baxo dos Brâcos
[x] Corresponderiam,
talvez, às actuais Calvaria de Cima e Calvaria de Baixo.
[xi] O que
parece confirmar a inexistência, naquele tempo, das diversas aldeias que hoje
povoam aquele espaço.
[xii] O
Infante D. Afonso, irmão do rei D. João III, foi Bispo da Guarda e de Viseu,
feito Cardeal com 8 anos de idade, chegou a acumular, em simultâneo, o
arcebispado de Lisboa, o bispado de Évora e a Comenda de Alcobaça.