segunda-feira, 30 de julho de 2012

A bilha do leite


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Agora o leite vende-se pasteurizado, UHT, desnatado, aditivado, gordo, meio-gordo, magro, com cálcio, com chocolate, tudo à vontade do cliente, em embalagem descartável.
Mas, há setenta anos, quando ser leiteiro ou vaqueiro em Lisboa era uma boa solução para tentar fugir às privações da borda da serra e uma grande quantidade de gente, das Ataíjas, do Casal do Rei e dos Moleanos o tentou, não era assim.

O leite, nas quintas, mungido por mãos calejadas, em muitos casos, também por conterrâneos nossos, era colocado em grandes bilhas de alumínio, de 50 litros (a firma Almeida & Freitas, Lda, de Vale de Cambra, ainda as fabrica e, nos Açores, é comum vê-las, ao dorso de mulas, a caminho do posto de recolha) que, chegadas ao posto da UCAL, eram despejadas em tanques e aí o recolhiam os leiteiros, em bilhas de latão de 20, 15, 10 ou 5 litros, com as quais iam fazer a “venda”.

A “venda” adquiria-se por trespasse e era um negócio fortemente regulado.
O leite, comprado na UCAL a 2$60 o litro, era vendido ao público a 3$00, sob a vigilância constante de uma frota de fiscais da Intendência Geral de Abastecimentos, capitaneada por um temível “seis dedos” que fazia perseguição feroz aos leiteiros, sempre de densímetro na mão, para garantir que os magros proventos da venda não eram aumentados à custa da adição de água.
Em resultado disso, a cadeia do Limoeiro foi habitação temporária para muitos desses nossos conterrâneos.
Só podia ser leiteiro quem possuísse o “cartão de sanidade” e fosse sócio do Sindicato Nacional dos Vendedores Ambulantes de Leite, exigências que, de resto, a partir de 1960 começaram a ficar em desuso.
Como a profissão que, também ela, começou a definhar com a entrada em funcionamento da Central Pasteurizadora de Leite de Lisboa e, rapidamente, desapareceu.

Em Janeiro de 1962, segundo a Portaria n.º 19086, de 20 de Março desse ano, o consumo de leite pasteurizado representava, já, cerca de um terço do total do leite consumido em Lisboa.
O meu pai tinha já trocado a vida de leiteiro pela de chauffeur de praça e também a minha mãe, talvez em 1964 ou 1965, abandonou a "venda", então já fortemente reduzida. 

Há dias reencontrei uma velha bilha (a bilha pequena, de 5 litros) com que os meus pais, calcorrearam milhares de quilómetros, entre a Almirante Reis e a Graça, levando leite a casa dos fregueses:




Notas:
1 - A UCAL, União das Cooperativas de Abastecimento de Leite de Lisboa, era uma organização corporativa que dispunha do monopólio do abastecimento de leite a Lisboa e, assim, à qual todos os produtores tinham, forçosamente, de entregar o leite para venda.
Na década de 1990 foi adquirida pelo grupo italiano Parmalat que, por sua vez, foi adquirido, em 2011, pelo grupo francês Lactalis.
A marca UCAL mantém-se, até hoje, no mercado.
.2 - A Central Pasteurizadora de Leite de Lisboa que era propriedade da Câmara Municipal de Lisboa iniciou o seu funcionamento, em regime experimental, em 1958, (ver Decreto-Lei n.º 41.772, de 4 de Agosto desse ano).
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